Assim como nós, as palavras têm uma história. Cura vem do latim e está ligada ao ato de cuidar. Esse mesmo radical dá origem à palavra curador, aquele que é responsável por um acervo ou instituição, por exemplo. Já cuidado, no sentido médico, talvez tenha sido descrito pela primeira vez por Celsus: In hoc casu medici cura esse debet, ut morbum mutet (Neste caso o cuidado médico é indicado para mudar o curso da doença) [1]. Hoje, quando pensamos em cura, parece que falamos de um ato isolado dentro de um tratamento qualquer. A cura da gripe. A cura do câncer. A cura do novo coronavírus. Uma linha de chegada que extingue um percurso. Porém é importante pensar na cura como um processo que depende de múltiplos fatores.
O cuidado médico ou cura médica está ligado a restabelecer a saúde (do lat. salus — são; íntegro) e se afastar da doença (do lat. dolentia — dor), enfermidade (do lat. infirmus — in “não ”+ firmus “firme”) ou patologia (do grego pathós — mal, afeto). Pensando no inglês to heal (curar; recuperar) ou no alemão -heit de gesundheit (saúde), ambos remetem a whole (inteiro; completo) há também um sentido de voltar a ser completo.
Bom, se a cura é um processo de cuidado que tem como objetivo resgatar nossa integridade, podem os espaços serem construídos para curar? Ou ainda, os espaços podem contribuir para os processos de cura?
Na Antiguidade Ocidental os templos eram um espaço de encontro com a dimensão mística da realidade. Ali havia o diálogo entre o mundo dos humanos e os planos do divino e do misterioso. Na Grécia Clássica, Esculápio, filho de Apolo e sob sua chancela, é tido como a divindade específica ligada a medicina, assim como suas filhas: Panaceia (deusa da cura — pan “todo” + akos “remédio”) e Hygeia (deusa da limpeza, sanidade e saúde — a palavra higiene deriva de seu nome). Até hoje as três figuras são lembradas no Juramento de Hipócrates, ainda adotado por formandos de medicina de diversas partes do mundo.
Nos templos dedicados a essas divindades havia espaços de purificação para se livrar dos males como pias e tanques de imersão.Também locais para sacrifícios em homenagem aos deuses e espaços para a criação de serpentes, símbolo de Esculápio. A astúcia e dualidade da serpente representam a relação entre remédio e veneno, já que o soro que cura é feito do mesmo veneno que mata, como uma das bases das práticas curativas. Algo pode te salvar ou te arruinar dependendo da dosagem. Pesquisadores atribuem o crescimento do culto a essas divindades à epidemia descrita na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides como Peste de Atenas. Os peregrinos vinham de toda parte em busca da cura divina.
A ascensão do cristianismo na Europa e o abandono das práticas pagãs pelo poder dominante vão reconfigurar os espaços de cura. Há pouca distinção entre os males do corpo e os males da alma nesse tempo. A doença estava ligada a perturbações causadas por entidades do mau ou mesmo o afastamento de Deus (sendo que na antiguidade clássica a doença poderia ter tanto origens no meio concreto quando espiritual). Durante a Idade Média o conhecimento religioso cristão apostólico romano era o único permitido na Europa Ocidental e sua área de influência. Qualquer movimento em outra direção é passível de punição e podia custar a vida dos hereges. Diversas pessoas, na sua grande maioria mulheres, foram queimadas em fogueiras por praticarem curas que não fossem ligadas ao catolicismo. Os saberes das plantas e rituais de purificação pagãos eram associados ao demônio e, portanto, proibidas.
Os templos recebiam as pessoas para tratar de sua alma. A crença na vida eterna após a morte colocava a salvação do espírito à frente das necessidades do corpo. As peregrinações aos lugares santos tornaram-se comuns. Mosteiros e conventos dispunham de alas para que seus hóspedes pudessem se restabelecer antes de retomar suas jornadas. Os doentes eram cuidados por leigos ou religiosos ordenados. Essa prática de cuidar dos enfermos foi incorporada à Igreja como parte das obras de caridade estava muito mais ligada à garantia de uma “boa morte” do que um tratamento em si, além, é claro, de garantir a salvação do cuidador. Esse momento da história é bastante importante para entendermos o papel das Santas Casas de Misericórdia no sistema de saúde que temos hoje. Cuidar dos doentes não era uma responsabilidade do Estado, mas sim uma missão e um compromisso com Deus. Era papel religioso cuidar de quem estava em sofrimento.
A Hanseníase (ou Lepra), mal citado na bíblia como castigo divino à humanidade e não tendo cura naquele momento, mesmo sendo conhecida desde a Antiguidade, teve papel fundamental durante esse período governado pela fé católica para moldar os espaços de cura. Os enfermos eram “capturados” e enviados para espaços fora da área urbana para viverem isolados convivendo apenas com semelhantes que compartilhavam do mesmo mal ou cuidadores benevolentes. Os leprosários ou lazaretos eram comuns nesta época. Estima-se que mais de 19.000 espaços como esse se espalharam por toda a Europa a partir da Alta Idade Média. Seu objetivo tinha mais a ver com o cuidado dos sãos, ao afastá-los da possibilidade de adoecerem, do que com cuidado daqueles que sofriam, isolando-os à própria sorte e àmisericórdia divina.
Com o crescimento urbano e aumento populacional questões sanitárias coletivas ganharam uma nova importância. Por volta de 1500 Paris era a maior cidade do Ocidente com cerca de 280.000 habitantes. Parece pouco nos números de hoje, mas estima-se que o mundo naquela época tinha pouco menos de 500 milhões de habitantes. A questão dos pobres e desvalidos pelas ruas de Paris se tornou um grande problema. A presença dessas pessoas no espaço urbano era vista como uma ameaça à ordem social dominante governada por uma burguesia em ascensão. Como medida de contenção, em 1656 é fundado o Hospital Geral, instituição que tem caráter mais de reforma de outras pequenas instituições como mesmo propósito do que uma inovação. Seu objetivo era receber todos aqueles vistos a-sociais: os miseráveis, os loucos, os devassos, as prostitutas, as pessoas com deficiência…. Era o destino correcional de toda a imoralidade que pudesse corromper os virtuosos. O hospital (do latim hospes — aquele que recebe o estrangeiro) nasce não como uma instituição de cuidado para os doentes, mas um local que abrigava aqueles que poderiam perturbar física, mentalmente ou moralmente os saudáveis. Vale lembrar que antes disso no Oriente e mesmo durante o Império Romano existiram outros espaços de cura, porém com organização e propósitos distintos do hospital francês do século XVII, porém essa é uma outra história para ser tratada em outro texto.
Os Hôtel-Dieu, instituições contemporâneas ao Hospital Geral dedicadas ao cuidado dos desvalidos enfermos, não tinham um caráter curativo, mas assistencial. Segundo Michel Foucault esses estabelecimentos eram uma espécie de morredouros ou espaços para morrer: o pessoal do hospital não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas conseguir a própria salvação. Era um pessoal caritativo — religioso ou leigo — que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna [2].
Para além dos templos religiosos e das instituições de controle social, é no íntimo das residências onde serão tratados os enfermos. Até a criação dos hospitais modernos, os doentes tinham seus cuidados feitos de maneira individual e particular por seus familiares e, quando tinham meios para tanto, recebiam algum tratamento médico ou recebiam visitas de religiosos. Falarei delas mais adiante.
Com o enfraquecimento do poder da Igreja, a medicina ocidental vai se separando cada vez mais da prática religiosa e se tornando cada vez mais científica. É a partir do século XVIII que a prática médica se aproximará daquela que conhecemos hoje. O médico que antes ia ao encontro dos doentes em seus espaços íntimos passa a ter o hospital como sede por excelência. É neste momento em que o hospital se medicaliza e nasce o conceito de nosocômio (do grego nósos- doença + komeu- curar) ou espaço para curar doentes.
Partindo do novo entendimento de que não mais são espíritos maléficos que causam as doenças, mas sim as condições do meio em que se vive e a capacidade de cada ser de lidar com essas condições, o espaço passa a ter papel determinante na a saúde das pessoas. As condições das instituições asilares na Europa são vistas como um lugar de risco e disseminação de doenças. Neste momento a arquitetura do hospital deve ser fator e instrumento de cura [2] e não mais polo gerador das enfermidades. O médico que antes ia ao encontro dos doentes agora tem o hospital como sede para recebê-los. Os leitos individuais cercados por equipamentos têm a função de criar um mundo particular controlado adequado para tratar cada caso. Seja através de uma atmosfera modificada através de respiradores, uma dieta específica, rotina de exercícios, banhos ou mesmo o uso de substâncias que possam ajudar o corpo a voltar a ser completo. Estudiosos começam a se interessar pelas condições de ventilação, iluminação distribuição das salas e posicionamento dos ambientes de tratamento e sua relação com o processo de recuperação dos doentes. Os espaços hospitalares são vistos como verdadeiras máquinas feitas para curar.
Com avanços sucessivos da prática médica e melhor entendimento da epidemiologia (parte da medicina que estuda os fatores de disseminação e desenvolvimento das doenças) os espaços de cura e tratamento das pessoas doentes ganharão uma nova importância, sendo um projeto interdisciplinar necessariamente. Construir um hospital não será tarefa apenas do arquiteto, mas de uma equipe de profissionais de diferentes áreas do conhecimento, incluindo médicas, enfermeiras, arquitetas, engenheiras, administradoras hospitalares… A arquitetura de um hospital é fruto de um longo processo de intersecções de saberes.
Novamente, uma epidemia vai reconfigurar a forma como os espaços de cura são pensados. O advento da Revolução Industrial será um dos principais fatores para o crescimento das cidades entre os séculos XVIII e XIX. Assim como a Paris do século XVI a Londres dessa época ganhará uma escala urbana jamais vista em seu tempo, atingindo a marca de 1 milhão de habitantes volta do ano 1800 e se tornando a maior cidade do mundo. As pessoas que viviam espacialmente distantes umas das outras agora dividem espaços cada vez menores e condições sanitárias bastante precárias. Ambiente favorável para que uma nova epidemia molde os espaços de cura. A Tuberculose, ou Peste Branca, conhecida desde a Antiguidade e altamente contagiosa vai se espalhar rapidamente pelos núcleos urbanos.
A expansão da tuberculose no meio urbano traz de volta o movimento de excluir os doentes do convívio dos demais para evitar uma contaminação. Porém, neste momento há uma nova compreensão de como a doença de espalha e uma nova forma de tratar os doentes. Uma nova prática de isolamento ocorrerá enxergando a necessidade de cuidar daqueles que estavam em sofrimento. Há a criação de hospitais e colônias fora do espaço urbano (visto como um novo causador de doenças) para que as pessoas pudessem respirar ar puro ou mesmo uma mudança de configuração dos espaços internos dos hospitais que permitissem o isolamento. As grandes enfermarias dão espaço para quartos para 2 ou 3 pessoas ou mesmo individuais. São pequenas células de tratamento que vão evoluir ao longo do tempo com os sucessivos avanços tecnológicos nos anos seguintes.
Novamente nos encontramos diante de uma nova epidemia, mas desta vez de proporções nunca vistas. O fenômeno da globalização e popularização do turismo nos fez viajar por todo o mundo. Chineses e alemães, brasileiros e italianos, angolanos e chilenos podem visitar os lares uns dos outros no intervalo de algumas horas. Durante quase toda a história da humanidade a grande maioria da população viveu em áreas rurais, o que mudou recentemente com cerca de 54% da população vivendo em cidades hoje com uma tendência de crescimento para os próximos anos. No Brasil, mais de 80% da população vive em núcleos urbanos. As grandes cidades do passado que eram uma exceção hoje são a regra. Estamos cada vez mais próximos e em maior número e assim como a tuberculose encontrou condições favoráveis para se espalhar pelos núcleos urbanos entre os séculos XVIII e XX, a COVID-19 também encontrou só que numa escala muito maior no século XXI.
O isolamento social continua como estratégia de contenção da disseminação de doenças, mas permanece em constante transformação. Como isolar uma população inteira quando não se sabe quem está e quem não está contaminado? A posição de autoridades médicas e governos pelo mundo tem sido reforçar: fique em casa. A recomendação é que só se saia para o indispensável e corra para os hospitais apenas em casos graves. Os espaços concebidos como máquinas de curar operam para além de sua capacidade e uma máquina de apoio é usada como estratégia para atender os doentes. Os hospitais de campanha, estruturas hospitalares temporárias, normalmente utilizados em guerras ou catástrofes naturais tem feito parte de nosso cotidiano. As superestruturas semelhantes a pavilhões de eventos e feiras são uma alternativa para suprir a falta de leitos nos nosocômios.
Após um longo percurso voltamos ao espaço a casa como o centro da cura. Com a recomendação de nos mantermos fisicamente longe uns dos outros, estamos num processo de reconstrução da intimidade de nossas moradias. Nossa sociedade sedentária implica num lugar para retornar todos os dias e descansar. Nos rituais de higiene, alimentação e sono voltamos a nossa integridade e firmeza plenos pouco a pouco para mais um novo dia e jornada. Ao longo de toda a nossa jornada como humanos que vivem em núcleos mais ou menos fixos o espaço da habitação sempre caminhou ao lado dos templos e dos hospitais. Não apenas como espaço da cura de doenças, mas do restabelecimento de nossas forças. Construímos espaços de expressão de nossa subjetividade e intersubjetividade através de objetos e ambientes, mas antes de tudo, espaços onde possamos ser completos.
O retorno à casa, também é um retorno ao entendimento da cura como processo e não como o resultado de uma ação única como o avanço da tecnologia farmacêutica ou o surgimento das vacinas contribuíram para fortalecer. Não é o remédio em si que cura, mas o processo no qual ele está inserido.
Não gostaria de terminar esse texto sem falar de um fator fundamental em nossa recuperação dentro dos espaços: o outro. Os atos de cuidar e ser cuidado implicam na presença de um outro. Diversas práticas que compõe a Medicina Tradicional Africana têm em comum algo que a Medicina Ocidental vem descobrindo há relativamente pouco tempo como base fundamental: não busca apenas a cura e a recuperação dos sintomas físicos, mas sim um equilíbrio entre paciente, ambiente cultural e mundo energético, procurando a reinserção social e psicológica do doente dentro de sua comunidade. [4]. A tradição afro-brasileira de cura passa por um saber íntimo do ambiente em que se vive, não apenas das paredes que nos cercam, mas das plantas que podemos ter no quintal, as palavras que podem nos conduzir por jornadas de recuperação e o afeto construído através dos gestos de cuidado. A construção do lugar de cura ocorre na transformação do espaço pela ação do grupo de pessoas e seus saberes em torno daquele que precisa de cuidados. Não é a casa em si que vai curar o doente, mas o processo vivido dentro dela e o afeto é fundamental na construção dessa relação. Há de se cuidar dos semelhantes. Cuidar de um é cuidar de todos.
Em tempos como este em que vivemos agora em que alguns de nós têm o privilégio de passar quase a totalidade de seu tempo em casa, esse espaço tem ganhado uma importância maior do que já tinha, indo além de um lugar para se abrigar no fim do dia. É no diálogo com a dor que muitas coisas belas adquirem seu valor [5].
Mesmo os prédios não sendo capazes de solucionar mais do que uma fração de nossas insatisfações ou de impedir o mal de se manifestar diante de seu olhar atento [5] podem ser parte importante do o processo de cura. Podem oferecer boas condições físicas (ventilação, iluminação, temperatura, umidade) para que possamos nos recuperar, mas também nos encantar e nos encher de esperança por dias melhores. Podem abrigar nossas memórias de tempos bonitos ou dos sonhos que queremos realizar. Proporcionar momentos de pausa que nossa rotina não nos permite. Nos convidar a olhar pela janela ou para o interior de nossos corações. São parte de um processo maior de encontro de diferentes forças e saberes em constante diálogo na busca de tornar-se inteiro novamente.
Obras Citadas
1 — CELSUS, Aulus Cornelius. Da Medicina. Disponível em Latim.
2 — FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. São Paulo: Paz e Terra. 2016.
3 — SENNET, Richard. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso. 2016.
4 — http://www.afreaka.com.br/notas/sabedorias-e-poderes-da-medicina-tradicional-africana/
5 — BOTTON, Alain de. A Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Rocco. 2007.